segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Cidadãos da República Kane

No aclamado filme Cidadão Kane, Orson Welles parece direcionar nossa atenção para um atributo interessante do personagem em questão: sua incessante busca pelo reconhecimento alheio. Um roteiro rodado no início da década de quarenta não se apresenta tão distante da atualidade no que diz respeito à condição humana. Na verdade, o perfil do Kane de Welles ironicamente se enquadraria bem mais nas angústias contemporâneas da pós-modernidade do que no cenário PB da modernidade de 1941. Não pela ausência de cores (o que, vale ressaltar, não desvalida em nada uma obra, uma vez que sempre ouço: “você está vendo um filme preto e branco?”, pois acreditem, numa época onde ainda não fora descoberto o uso das cores no cinema, já haviam grandes gênios capazes de fazer jus ao título de sétima arte). Logo, o tema aqui não é estético mas um pouco mais antropológico. Apesar de que vale lembrar o mérito revolucionário de Welles no sentido audiovisual causada por inovações como o uso de flashbacks, sombras, as longas seqüências sem cortes, os plongées, a distorção de imagens; a iluminação pouco convencional, os diálogos sobrepostos, a cenografia que mostra pela primeira vez no cinema o tetos dos ambientes.

Lendo algumas sinopses sobre o filme, percebi que muitas diziam algo como: “um poderoso e dramático conto sobre o uso e abusos do dinheiro e do poder.” Com uma síntese como esta, de fato, eu não esperava ver o filme que vi. Não foi o império Xanadu ou a monstruosa coleção de estuetas capazes de me impressionar a ponto de entender a essência de kane, o que efetivamente me emocionou foi, sem dúvida, a carga dramática presente em sua corrida desesperada pela conquista do afeto alheio. Tudo na vida do personagem, desde a infância, bruscamente separada dos pais - fato que acredito ser mostrado com o intuito de construir parte da identidade do Kane adulto - orbita em torno de ser amado e reconhecido, numa busca doentia e obsessiva.

Este é um cidadão ao qual enquadraria-se perfeitamente a República Pós-Moderna – o nosso mundinho de descontentamento generalizado. Assim como Kane, nós nos interessamos mais pelos meios do que pelos fins. Ele não preocupava-se com o multiplicar ou esvair de sua fortuna, Kane alimentava-se de prestígio, aplausos e confetes. Sua maior frustração foi concluir que o mesmo dinheiro que comprou, subtraiu de todas as coisas o seu maior atributo: a espontaneidade. A figura da inconsolável esposa (a cantora sem talento) se apresenta como a síntese desse fantasma, lembrando-o que o poder do dinheiro se limita quando trata-se do sentimento verdadeiro, da fidelidade e admiração espontâneas, sem fins lucrativos.

Somos os Kanes atuais buscando alcançar o reconhecimento pessoal num interminável agora, sem perspectivas de traços objetivos para um amanhã coletivo. Basta olharmos para o Iluminismo com as mentes brilhantes do século XVIII que procuravam nas ciências e nas artes emancipar a humanidade do obscurantismo da Idade Média. Tudo era feito com o objetivo de, no fim, alcançar a liberdade e a felicidade. Hoje, em termos de civilização, o movimento das sociedades não se inspira em idéias superiores, mas vive se movimentando com o intuito de estabelecer a concorrência acirrada entre todos os indivíduos, sem objetivos finais claros. O êxito pessoal é o que importa, porque a história não se move pela aspiração a um mundo melhor, mas pela ação mecânica da competição. Precisamos ter poder, dinheiro, um carro novo, um namorado bonito e educado, os filhos mais inteligentes, as mais belas fotos no orkut, os melhores cargos, os maiores títulos, tudo para conseguir o máximo de reconhecimento alheio e nos sentir superiores aos outros. E se não pudermos “ter”, resta-nos ainda apelar para a opção “parecer”. Parecer ter uma vida, parecer ser feliz. E com a nossa pós-modernidade alcançamos todas as ferramentas necessárias para tal: Clique aqui!

4 comentários:

Maria. disse...

Nossa, as observaçoes do último parágrafo foram muitíssimo bem feitas, parabéns. Concordo plenamente. As vezes fico na dúvida se o "grande culpado" é mesmo o sistema e se algum dia ele pode mudar. (pena que pelo andar das coisas, não vou estar viva pra ver esse GRANDE acontecimento.) E como é estranho o fato de que por mais que queiramos fugir dessa 'ditadura da felicidade' não conseguimos. (as vezes não gosto de pensar muito isso,até porque não sei se ía gostar da resposta).
Queria ver esse filme, mas onde eu moro NUNCA consigo alugar esse tipo de filme, e não consigo baixar tb.. demora demaisss! :/
Já li algumas sinopses e achei bem interessante. Tem até um documentário, "além do cidadão kane" falando sobre a rede globo/roberto marinho, se puder veja. Eu comecei a ver, porém demorou muito pra carregar o video e desisti! rs Mas parece ser bem interessante ;) Beijos *:
E, ah! Obrigada pela dica com as fotos do cantinho, haha.

matheus disse...

Oi, Sara
Desculpa a demora na resposta. "Dupla Vida de Veronique" é um filme maravilhoso.. Meu dvd foi inclusive autografado pela Irene, na ocasião que eu comentei com você Você costuma baixar por torrent? Tem no fórum MakingOff (http://makingoff.org), mas se você não tem conta precisa de um convite pra entrar. Me passa o seu e-mail que eu te convido.

Sobre esse post, Rogério Sganzerla diz que Cidadão Kane é o marco do Cinema Moderno, no livro "Por um cinema sem limites". Uma ótima leitura.. Ele era bastante radical e pouco acadêmico, o que na minha opinião é ótimo, deixa tudo mais sincero e verdadeiro.

Vamos nos falando!

Meu contato de e-mail e msn: matheustopine@gmail.com

bjs

matheus disse...

opa!
Se por acaso você tentou me adicionar no msn agora pouco, peço pra adicionar denovo... Apareceu a janela enquanto eu estava no meio de um texto, acabei apertando algo que não devia e nem li quem era.. ahhahaha...
abs

Leandro Afonso Guimarães disse...

cidadão kane é o tipo de filme que respeito forever, mas ele não consegue me tocar. acho que pq a maioria das coisas, que pra época eram revolucionárias, viraram modelo. e segundo pq é coisa pessoal mesmo, de eu simplesmente não achar que tudo de bom (que dá pra ver) ali consegue me tocar. fico feliz de vc conseguir divagar tanto, sarinha, e fico triste por não conseguir ter vontade de comprar o filme, rs

anyway, feliz natal e boa virada nessa terra deserta e horrorsa... ^^