terça-feira, 28 de outubro de 2008

O você-meu

Não quero a tristeza do poeta devorador de angústias vendidas no sebo nem a alegria eufórica de um alienado qualquer frente às piadas fast-food dos programas televisivos de domingo. Eu quero o que eu não quero querer. Quero você. Você imaginado, pintado, criptografado pelo meu pensamento. Não quero sua essência nua e crua, assada ou cozida ao molho pardo. Quero os fragmentos que minha memória selecionou, tudo o que ela guardou, quero quem ela inventou. Quero o "você-eu", o "você-meu", dispenso o "você-seu". Agora que te criei você está solto por aí, dentro de mim. 

"De você sei quase nada"[...] 
Sei quase-muito, quase-tudo de um outro, que é você.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Espana-dor

Espanar tudo o que restou do que sempre foi resto. Liquidificar boas idéias e pôr pra assar. Degluti-las, mastigá-las e devorá-las como fez Adriana com Caetano. Na memória, triturar os momentos amargos que insistem em tomar o lugar das idéias contidas na receita do bolo. E para os pedaços que caírem no chão: aspirador! Porque mais tarde, distraída,  facilmente eu escorregaria nas migalhas. 

- Quão prazeroso seria os utilitários domésticos domesticando-nos...

No país dos mamutes: festaDeleitamos no momento porque o amanhã também a nós pertence e só amanhã falaremos sobre isso - quando já for hoje. No país dos mamutes liberdadeVoamos na altura, largura e profundidade que nos aprouve. Inventamos nosso certo e errado, nossas leis, nosso julgo e nosso perdão. No país dos mamutes: homens-deuses. Nós, criadores de nós mesmos, autores e consumadores de nossas dúvidas e certezas apoiadas em nosso fabuloso poder evolutivo. No país dos mamutes: sucesso. Abastecidos por aplausos e insuflados de elogios, encontramos o caminho do progresso, dos homens-deuses, dos deuses que somos. No país dos mamutes: conhecimento. Esse prazeroso veneno que alimenta-nos com verdades insípidas e dúvidas incolores, dissolvendo o que ainda nos sobrou da inútil fé. No país dos mamutes: Darwin. 1, 2, 3 e pluft (onomatopéia de varinha de condão): -Bem vinda Consciência! No país dos mamutes: falta. Espaço oco, vazio - entupido, quase derramando de festa, liberdade, homens-deuses, sucesso, conhecimento e varinhas de condão.

"Podes me dizer por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?"

Feche os olhos Alice. 
Não abra. Feche. 
Não acorde. Sonhe. 
Sua saída é a entrada. 
Crie. Recrie. Sonhe. Desprender-se é tornar a prender-se num outro. 
No novo. Onde acordar é voltar a sonhar. Sonhar é acordar para dentro. 
E para fora, pouco há. 

O rio de Heráclito

Devir, devir, devir.
Eu, não mais eu, não mais esse, não mais, não mais.
Mais um, mais outro, e outro, e mais alguns.
Não sou eu, sou o outro que acaba de não ser mais ele.
Devir, devir, devir.

eu coleciono você
 










        em meu porão.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

AnaliZoando


Roberta:

"Segure o tchan, amarre o tchan, segure o tchan tchan tchan tchan tchan", isso é poesia pura! Sinta como a rima é o auge, que mistura-se num sentido de onomatopéia criativa e não deixa que seus versos fujam do pensamento, pensamento este onde está intrínseco a auto-ajuda, onde o autor diz repetidamente "Segure, amarre, segure", implorando ao ouvinte que não deixe escapar o seu tchan".

domingo, 19 de outubro de 2008

MOSAICO


Quantos, onde, quando, quem, por que, como, com quem, vestido de que, comendo, usando, bebendo, amando, sentindo, matando, julgando, nascendo, morrendo, nascendo, morrendo, nascendo, morrendo.

Cultura (Arnaldo Antunes)

O girino é o peixinho do sapo
O silêncio é o começo do papo
O bigode é a antena do gato
O cavalo é pasto do carrapato

O cabrito é o cordeiro da cabra
O pecoço é a barriga da cobra
O leitão é um porquinho mais novo
A galinha é um pouquinho do ovo

O desejo é o começo do corpo
Engordar é a tarefa do porco
A cegonha é a girafa do ganso
O cachorro é um lobo mais manso

O escuro é a metade da zebra
As raízes são as veias da seiva
O camelo é um cavalo sem sede
Tartaruga por dentro é parede

O potrinho é o bezerro da égua
A batalha é o começo da trégua
Papagaio é um dragão miniatura
Bactérias num meio é cultura.

Realidade onírica (e vice-versa)

"Na realidade, a realidade não existe. Não há diferença: quer tu durmas ou não durmas, é a mesma coisa, é sonho."

O que nos separa do mundo dos sonhos? Como reconhecer a realidade? Sentidos? Materialidade? Não estão estes também presentes em sua experiência onírica? Não fazem dela um universo tão real quanto o... quanto a... Afinal, onde está o ladodecá e o ladodelá? Se o que nos separa é o ato de acordar, devíamos então nos ocupar em descobrir onde fomos parar  em meios a tantos e tantos despertares...

"Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,

Mas, quando dispertei da confusão,

Vi que esta vida aqui e este universo

Não são mais claros do que os sonhos são

Obscura luz paira onde estou converso

A esta realidade da ilusão

Se fecho os olhos, sou de novo imerso

Naquelas sombras que há na escuridão.

Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,

É a mesma mistura de entre-seres

Ou na noite, ou ao dia transferida.

Nada é real, nada em seus vãos moveres

Pertence a uma forma definida,

Rastro visto de coisa só ouvida".

(Fernando Pessoa, 28-9-1933)

No mais, resta-nos vaidade e soberba.

"Viver no presente, dizem. O poder do agora, dizem. A importância do momento, dizem. Mas o que é o presente? Onde está o agora? Que é do momento? No instante em que você chegar ao fim desta frase, o momento em que iniciou a leitura já terá passado. E mesmo isto é uma simplificação. O passado engole o momento letra a letra, segundo a segundo. O presente não existe, a não ser como ponto de um escoamento vertiginoso, uma hemorragia do tempo, em que um futuro potencial se converte incessantemente num passado virtual, que só existe na memória. O presente é esse espaço de conversão, de transmutação até, mas um espaço utópico, uma vez que não pode ser precisamente localizado em lugar nenhum. Estou aqui, mas não agora, porque o agora não está mais aqui, o agora se deslocou, ou então nunca esteve a não ser sob a forma desse deslocamento contínuo, elusivo, indefinível. É o movimento mercurial de um agora inexistente que engendra histórias, as minhas histórias, que mal e mal aglutino sob o nome de vida, as histórias do mundo, que desafiam as aglutinações dos historiadores, a história do universo, que produzo ao percebê-lo, mas a soma de histórias só se deixa engendrar porque não está mais aqui quem falou".

(texto de malprg.blogs.com/francoatirador)

ana e o mar

o teatro mágico

Composição: Fernando Anitelli

Veio de manhã molhar os pés na primeira onda
Abriu os braços devagar e se entregou ao vento
O sol veio avisar que de noite ele seria a lua,
Pra poder iluminar Ana, o céu e o mar

Sol e vento, dia de casamento
Vento e sol, luz apagada no farol
Sol e chuva, casamento de viúva
Chuva e sol, casamento de espanhol

Ana aproveitava os carinhos do mundo
Os quatro elementos de tudo
Deitada diante do mar
Que apaixonado entregava as conchas mais belas
Tesouros de barcos e velas
Que o tempo não deixou voltar

Onde já se viu o mar apaixonado por uma menina?
Quem já conseguiu dominar o amor?
Por que é que o mar não se apaixona por uma lagoa?
Porque a gente nunca sabe de quem vai gostar

Ana e o mar... mar e Ana
Histórias que nos contam na cama
Antes da gente dormir

Ana e o mar... mar e Ana
Todo sopro que apaga uma chama
Reacende o que for pra ficar

Quando Ana entra n'água
O sorriso do mar drugada se estende pro resto do mundo
Abençoando ondas cada vez mais altas
Barcos com suas rotas e as conchas que vem avisar
Desse novo amor... Ana e o mar

sexta-feira, 17 de outubro de 2008


[...] A janela
Forma uma tela
O mundo todo dentro dela
É pequeno pra mim [...]

Plágio. Janela.

E o cotidiano dela?
Plágio?
    
Máster. O Edifício.
Edição da vida.

O Mártir. Minha janela.
O mundo todo dentro dela.
Lá não é pequeno.

(Autor conhecido)

Balaio do Pessoa


Sossega, coração! 
Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperença a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
(Fernando Pessoa, 2-8-1933)

Todas as cousas que há neste mundo
Têm uma história,
Excepto estas rãs que coaxam no fundo
Da minha memória.
Qualquer lugar neste mundo tem
Um onde estar,
Salvo este charco de onde me vem
Esse coaxar.
Ergue-se em mim uma lua falsa
Sobre juncais,
E o charco emerge, que o luar realça
Menos e mais.
Onde, em que vida, de que maneira
Fui o que lembro
Por este coaxar das rãs na esteira
Do que deslembro?
Nada. Um silêncio entre jucos dorme.
Coaxam ao fim
De uma alma antiga que tenho enorme
As rãs sem mim.
(Fernando Pessoa, 13-8-1933)

Por quem foi que me trocaram
Quando estava a olhar pra ti?
Pousa a tua mão na minha
E, sem me olhares, sorri.

Sorri do teu pensamento
Porque eu só quero pensar
Que é de mim que ele está feito
É que tens para mo dar.

Depois aperta-me a mão
E vira os olhos a mim...
Por quem foi que me trocaram
Quando estás a olhar-me assim?
(Fernando Pessoa)

Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.
(Fernando Pessoa, 1931)

Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!

Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, 'stou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!
(Fernando Pessoa, 23-10-1931)

Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.
Viver é não conseguir.
(Fernando Pessoa, 14-6-1932)

Como nuvens pelo céu
Passam os sonhos por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim.

São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transtorna?
Que coisa inútil me dói?
(Fernando Pessoa, 17-6-1932)

Minhas mesmas emoções
São coisas que me acontecem.
(Fernando Pessoa, 31-8-1932)

Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.

Extensão parada
Sem nada a estar ali,
Areia peneirada
Vou dar-lhe a ferroada
Da vida que vivi.
(Fernando Pessoa, 18-3-1935)